Dia desses, entre uma grande movimentação interna e outra, coalizei com o movimento global de cortar os cabelos em casa durante o isolamento social.
São tantos emaranhados que me trouxeram até esse movimento que é também um manifesto coletivo por tudo que simplesmente “já deu”. O primeiro, confesso, são as quedas. Nos últimos meses, tenho ficado perplexa com a quantidade de fios que vejo pelo chão. Penso se me falta nutrientes, um shampoo menos barato, ou se é caso de olhar menos pra baixo. Vá saber…
A verdade é que uma hora ou outra é inevitável querer passar a tesoura. E como fidedigna jovem do século XXI, corri fazer uma enquete no Instagram pra saber a tão importante opinião do meu público de 5 ou 10 amigos relevantes. E ali rascunhei mais uma narrativa lésbica nas redes, entre tantas que me aparecem todos os dias em sequência nos conhecidos stories. A gente finge que não se importa tanto assim com a opinião do resto.
Nessa de botar o peito na rua e nas redes sociais, me considero uma alvoroçada consumidora e produtora de cultura LGBTQI+, com todas as dores e delícias de ser quem somos e andarmos juntos. E foi falando em cabelo, em passar ou não a tesoura, que me dei conta de quão cafona é o código ético e moral da “sociedade civil” em torno dos cabelos. Tinha que ser hétero.
SAPATÃO. Eu tenho certeza que 50 anos atrás, em alguma sofrência não tão diferente das minhas, alguma mulher já se perguntava se “ousaria” cortar o cabelo curto e portar automaticamente a carteirinha oficial autenticada com foto e tudo de “lésbica”. No mesmo embalo, não é a toa que muitas de nós usaram e usam o cabelo mais comprido como uma estratégia silenciosa para uma vida mais tranquila no que diz respeito a oportunidades de emprego, boas relações familiares, evitar olhares discriminatórios ou quem sabe diminuir as chances de ser atacada violentamente sem qualquer motivo por aí. Esse dilema nunca é superado por completo, ao que me parece.
O que eu acho curioso é que essa barreira estética imposta pelo mundo heterossexual e cisgênero coexiste com uma das minhas características favoritas da comunidade LGBTQI+: a nossa potencialidade criativa. E antes que criem imagens, já aviso que não falo do estereótipo da travesti espetáculo, ou do viado que ama pop. Não é bem por aí.
Eu encaro a diversidade sexual como algo muito além de quem beijamos e nossas genitálias. Vejo na cultura LGBTQI+ tamanha complexidade estética que na minha humilde opinião, não é nem um pouco comum ao universo heterossexual. A riqueza de detalhes, a corporalidade, nossos códigos linguísticos, nossos usos múltiplos dos sentidos… eu sinceramente não acredito que somos historicamente oprimidos por um grupo social que trepa em 15 minutos!
Percebo que por muito tempo estivemos tão empenhados em nos esconder para não morrer, que perdemos demais nosso referencial de felicidade. Prova disso é o que acontece quando estamos em ambientes livres das réguas heterossexuais e cisgêneras — se é que vocês me entendem.
Eles tentam reduzir nossa corporalidade à vulgaridade, nossa complexidade estética à “chamar atenção”, nossos códigos linguísticos e sentidos aguçados à meras porcarias. Reproduzem como um rádio quebrado formas de ser e se comportar completamente vazias. Porque parece que há gerações e gerações lhes foi esgotada a poesia.
Hoje, graças à tantas, tantos e tantes, podemos viver menos escondidos. Acredito que, exatamente por isso, temos o dever de questionar essa mesquinhez de liberdade que nos destinam. Não é suficiente quebrar os padrões de gênero, essa coisa de cabelo de homem ou de mulher. É urgente questionarmos essa pobreza estética, essa mesquinhez de autoconhecimento, essa inflexibilidade linguística, corporal, sensorial… credo, que tédio!
É possível listar facilmente motivos para manter os cabelos curtos, a começar pelo calor, praticidade, gastos com limpeza e cuidados, estilo. Mas eu não consigo pensar um motivo sequer para manter os cabelos, por exemplo, simétricos. De onde surgiu essa regra?
Exercitar outras estéticas é também um ato de rebeldia, a máxima de um corpo que se lança contra a obviedade das normatividades. Aprofundar as possibilidades de ser, de se mostrar, de se conhecer, é tanto em um mundo tão raso, não é?!
Tesouras e navalhas em mãos!
(Prometo que vai ser só a pontinha…)